A execução mais vergonhosa da história dos EUA

George Stinney Jr., a pessoa mais jovem já executada na Carolina do Sul / Fotografia: Autor não creditado / AP

George Stinney Jr. não foi morto por um crime. Foi morto por uma farsa. Em 16 de junho de 1944, o Estado americano prendeu, julgou e executou um menino negro de 14 anos, com apenas 43kg, sem provas, com um advogado do Estado que não o defendeu, não chamou testemunhas e usou o caso para promover sua campanha, sem direito à defesa. E o fez com pressa. Porque o que estava em jogo não era justiça. Era vingança racial.

O crime, o pânico e o bode expiatório

O cenário era Alcolu, Carolina do Sul — um vilarejo segregado, dividido até entre igrejas: de um lado, a Green Hill Missionary Baptist Church, chamada de “igreja dos negros”; do outro, a Clarendon Baptist Church, a “igreja dos brancos”. No dia 24 de março de 1944, George e sua irmã brincavam nos trilhos quando duas meninas brancas — Betty June Binnicker (11) e Mary Emma Thames (7) — se aproximaram e perguntaram onde poderiam encontrar flores ou frutas locais. Horas depois, não voltaram para casa.

Betty Binnecker (esquerda) / Mary Thames (direita)

Uma busca foi organizada. George, que participava da busca, comentou com um vizinho que as tinha visto. Na manhã seguinte, os corpos das meninas foram encontrados em uma vala rasa — no lado negro da cidade. Os crânios estavam esmagados. E o racismo fez o resto.

George foi preso no dia seguinte. Interrogado por horas, sem advogado, sem os pais. Sua mãe era cozinheira; o pai, operário da serraria local. Ambos estavam fora de casa quando a polícia chegou — e levou George e seu meio-irmão Johnny algemados. Johnny foi solto. George, não.

Terror, expulsão e silêncio

O pai de George foi demitido imediatamente. A família foi forçada a fugir de Alcolu sob ameaça de linchamento. Uma multidão armada tentou linchar George dois dias após sua prisão, mas ele já havia sido transferido secretamente para outra cidade. George não viu os pais nem uma única vez até após o julgamento. A família só pôde visitá-lo já condenado, no presídio de Columbia.

O julgamento que foi uma encenação

Em 24 de abril de 1944, George foi julgado em um tribunal branco, para uma plateia branca, por um júri branco. Nenhum negro foi autorizado a entrar no tribunal. O advogado de defesa, Charles Plowden, era um tributarista em campanha para o parlamento estadual. Não chamou testemunhas, não questionou provas, não recorreu. Não defendeu.

A promotoria apresentou apenas a palavra do xerife e uma suposta confissão de George — da qual não restou nenhum documento, assinatura ou gravação. Segundo relatos posteriores, George teria sido forçado a confessar. Wilford “Johnny” Hunter, que dividiu cela com ele, testemunhou que George contou ter sido coagido.

O júri levou 10 minutos para condená-lo. Um público de até 1.500 pessoas cercava o tribunal.

A execução de uma criança

Em 16 de junho, George foi levado à cadeira elétrica. Tinha 1,55m de altura e 43kg. A cadeira era feita para adultos. Usaram uma Bíblia como apoio. A máscara de couro era grande demais e escorregou. Quando a eletricidade passou, os olhos de George estavam abertos e chorando. A execução exigiu três descargas. George morreu queimado. Tinha 14 anos.

Fotos do curta-metragem “83 Days”, que retrata a história e a execução de George Stinney Jr.

Não houve advogado. Não houve recurso. Não houve perdão. Houve apenas uma Bíblia colocada sob um menino preto, para que a cadeira da morte pudesse fazer o resto. E foi assim que queimaram um inocente — sobre o livro que dizia: “Maldito aquele que matar o inocente.” (Deuteronômio 27:25).

Sua irmã, Aime, viu o caixão. Disse que nunca esqueceu o rosto queimado do irmão. Ela tinha 8 anos quando o viu ser levado. E nunca mais voltou para Alcolu. Disse:

“Eu amaldiçoo aquele lugar. Eles destruíram minha família.”

Aime Ruffner com um retrato de seu irmão, George Stinney Jr /
Fotografia: Karen McVeigh para o Observer

O verdadeiro assassino?

Até hoje, o verdadeiro culpado nunca foi identificado. O reverendo que encontrou os corpos relatou que quase não havia sangue na cena, indicando que as meninas poderiam ter sido mortas em outro local. George, com 43kg, jamais conseguiria carregar dois corpos por mais de 400 metros sozinho. Ainda assim, o Estado preferiu a versão conveniente. E executou.

A tentativa de reverter a história

Em 2014, após mobilização da família e do historiador George Frierson, que começou a investigar o caso em 2004, a justiça da Carolina do Sul realizou uma audiência com novos depoimentos e documentos.

Charles e Aime, irmãos de George, reafirmaram que estavam com ele na hora do crime. O juiz Carmen Mullen reconheceu que o julgamento foi um absurdo. Disse:

“Não se pode justificar que uma criança de 14 anos seja acusada, julgada, condenada e executada em 80 dias.”

Declarou que George teve defesa ineficaz, confissão duvidosa e ausência total de devido processo. Disse:

“Não consigo pensar em injustiça maior.”

George foi oficialmente inocentado. Mas já estava morto.

Leis que segregavam — literalmente — os negros nos EUA

O caso de George é o retrato cru de um tempo em que o racismo nos Estados Unidos não era discurso. Era lei.

As Leis de Jim Crow, vigentes de 1876 a 1965, impunham a separação entre brancos e negros em todos os espaços:

Nos EUA, a cor da pele decidia se você era cidadão. George nasceu condenado.

Brasil x EUA: a diferença entre discriminação e estrutura

O caso de George Stinney Jr. escancara o que é, de fato, racismo estrutural — aquele em que a lei, o Estado e a Justiça trabalham ativamente para exterminar negros.

Nos Estados Unidos da década 40, a segregação racial era oficial: existiam leis que definiam onde um negro podia estudar, comer, beber água ou ser enterrado. Um garoto de 14 anos pôde ser preso, julgado e executado em menos de 3 meses, com base em uma suposta confissão sem provas, sem advogado, sem família por perto — porque o sistema funcionava assim. Legalmente assim.

No Brasil, apesar de termos uma história marcada por racismo e exclusão social, nunca houve segregação legalizada. Não existiu versão brasileira das Leis de Jim Crow. Nunca tivemos cadeira elétrica para menores de idade. Nunca houve linchamento estatal com sentença assinada em 83 dias.

Temos, sim, desigualdade. Discriminação. Racismo real em atitudes. Mas transformar isso em “racismo estrutural” nos mesmos moldes dos EUA é ignorar o horror que foi o racismo legal americano.

Comparar as realidades de forma rasa não honra nem os mortos de lá, nem os desafios reais de cá.

Uma sociedade miscigenada, não segregada

O Brasil, apesar de todos os seus problemas históricos, não nasceu de uma separação legal entre raças, mas de uma miscigenação social, sem segregação oficializada e sem estrutura legal para dividir pessoas pela cor da pele. Isso não apaga o racismo real e cotidiano. Mas distorce completamente a comparação com sociedades que impuseram separações raciais em lei.

Nos EUA, negros e brancos não podiam se casar, estudar juntos ou sequer usar o mesmo banheiro. No Brasil, a identidade nacional foi construída sobre a mistura — ainda que marcada por desigualdade. O racismo brasileiro não é estrutural como lá. É social, cultural, velado, seletivo — mas nunca legalizado.

A Justiça não falhou. Ela funcionou como foi desenhada.

George Stinney Jr. não foi morto pela justiça. Foi morto por um sistema que já tinha escolhido quem merecia viver e quem podia ser sacrificado. O nome disso é vingança racial. E a história deve lembrar disso para sempre.

“Quando você era branco, você estava certo. Quando você era negro, você estava errado.” — disse Aime.

Essa era a estrutura. Esse era o país. Esse foi o crime.

George não teve chance. Não teve voz. Não teve defesa. Só teve pressa — a pressa de um Estado em matar antes que alguém perguntasse: “e se for inocente?”. E foi.

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