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“A memória é o centro da nossa identidade. Mas também pode ser o centro da nossa destruição.”
– Elizabeth Loftus
Imagine ser acusado de um crime hediondo. Estupro, talvez. Não há testemunhas. Não há vídeo. Não há DNA. Só uma coisa: alguém lembra que foi você. E o sistema acredita. Pronto. Você está preso. Não porque cometeu o crime. Mas porque alguém acredita que você cometeu.
Esse é o drama de centenas de homens inocentes ao redor do mundo. E é também a razão de existir da doutora Elizabeth F. Loftus, a mulher que ousou dizer que a memória — essa coisa que nos faz quem somos — às vezes inventa quem somos nós e quem é o culpado.
A memória não é uma câmera
Loftus é professora de Psicologia, Comportamento Social, Criminologia e Direito na Universidade da Califórnia, em Irvine. Ela também é professora de Direito. E passou as últimas décadas provando cientificamente que a memória é mutável, frágil e pode ser plantada.
Ao contrário do que os tribunais gostam de acreditar, a memória não é uma gravação em HD que podemos acessar quando quisermos. Ela é mais parecida com uma colagem. Um quebra-cabeça que o cérebro preenche com pedaços reais, suposições e sugestões externas.
E é por isso que, sim, uma mulher pode jurar que foi você quem a estuprou. Mesmo que você nunca tenha chegado perto dela. Mesmo que ela realmente acredite nisso. Porque a sinceridade da vítima não é prova de verdade.
Como a memória mente?
A memória é construída em três etapas principais: codificação, armazenamento e recuperação. Cada uma dessas fases pode ser distorcida:
- Na codificação, somos seletivos. O cérebro registra apenas fragmentos, e preenche o resto com inferência e expectativa. Se você viu algo rápido, com medo, no escuro — seu cérebro vai tentar adivinhar o que faltou.
- No armazenamento, o tempo e a repetição alteram a lembrança. Cada vez que recontamos algo, não estamos apenas lembrando: estamos reescrevendo. Um detalhe adicionado hoje vira verdade amanhã. A emoção do momento pode suprimir ou realçar eventos.
- Na recuperação, a forma como nos perguntam muda o que “lembramos”. Perguntas sugestivas, afirmações anteriores, fotos, comentários de terceiros — tudo pode induzir o cérebro a reconstruir uma lembrança para se encaixar no contexto.
Loftus provou que é possível plantar memórias falsas em pessoas que passam a acreditar sinceramente em eventos que nunca aconteceram. Um experimento famoso fez participantes acreditarem que se perderam no shopping na infância, que foram atacados por um animal ou que assistiram a um evento trágico — tudo inventado, mas “lembrado” com detalhes.
A memória é moldável, influenciável, contaminável. E ainda assim é tratada como prova nos tribunais.
O caso que virou cartilha: Ronald Cotton e Jennifer Thompson
Em 1984, Jennifer Thompson foi estuprada. Determinada a identificar o criminoso, ela memorizou o rosto dele. Apontou Ronald Cotton, um jovem negro. Disse no tribunal: “Tenho 100% de certeza”.
Ronald foi condenado. Cumpriu 11 anos de prisão.
Mas o DNA provou que ele não era o culpado. Jennifer errou. A memória dela mentiu. Ou melhor: foi enganada por ela mesma, com a ajuda do sistema.
Ao contrário de outros casos, aqui o verdadeiro autor foi encontrado. Jennifer pediu perdão. Ronald perdoou. E juntos escreveram um livro: Picking Cotton. Dois sobreviventes de um mesmo erro: o da memória cega que vira condenação.
Quando a memória vira sentença
Segundo o Innocence Project, falhas de memória de testemunhas são a principal causa de condenações erradas nos EUA, responsáveis por cerca de 75% dos casos.
A maioria dos inocentes libertados graças ao DNA foram condenados com base em memórias distorcidas: gente que viu, que jurou, que reconheceu. Gente que tinha certeza.
E que estava errada.
No Brasil, essa discussão ainda engatinha. Aqui, a “palavra da vítima” segue sendo considerada prova plena. Mesmo quando vem desacompanhada. Mesmo quando há contradições, lacunas, mudanças de versão, sugestão de terceiros, indução em terapia.
Aqui, lembrar ainda é mais importante que provar.
Loftus: a mulher que enfrentou o sistema com dados, não com ideologia
Elizabeth Loftus não defende estupradores. Não protege agressores. E não nega traumas. Mas ela se recusa a aceitar um sistema que substitui provas por convicções emocionais.
Ela é odiada por feministas radicais, perseguida por movimentos identitários e ignorada por parte da imprensa. Porque o que ela prova não é popular: nem toda vítima está lembrando direito. E nem todo acusado está sendo lembrado corretamente.
A memória pode nos enganar com tanto realismo que não sobra espaço para dúvida. E é por isso que o processo penal não pode se basear apenas no que se lembra — mas no que se demonstra.
Se a memória mente, a justiça não pode ser cega
Quantos homens estão presos hoje porque alguém lembrou, chorou e acusou?
Quantos casos foram julgados com base em palavras desconexas ditas anos depois, sem vestígio, sem prova, sem consistência? Quantas condenações foram decididas por memórias que se moldam ao desejo de vingança, de aceitação social, de validação emocional?
Se a ciência já sabe que a memória é falha, por que o Direito insiste em tratá-la como certeza?
Quantos Ronalds, quantos inocentes precisam ser destruídos para que o sistema pare de tratar emoção como evidência e comece a respeitar o princípio mais básico da justiça: o de que ninguém deve ser condenado sem prova.
A memória pode te fazer lembrar. Mas a prova é o que impede que esse “lembrar” vire mentira com cara de justiça.
Tive oportunidade de conhecer um pouco do trabalho dela na minha Pós em Análise de Credibilidade e Inteligência Investigativa.
Aconselho verem o vídeo dela no Ted Talk “Até onde pode-se confiar na memória?”, muito legal e didático.
Tive oportunidade de conhecer um pouco do trabalho dela na minha Pós em Análise de Credibilidade e Inteligência Investigativa.
Aconselho verem o vídeo dela no Ted Talks:”Até onde pode-se confiar na memória?”, muito legal e didático.