Yana morreu com dois tiros. O acusado era capitão da PM. Em dois anos, virou major. Em doze, ainda não foi julgado.

Yana Luiza Moura Andrade Coelho foi assassinada com dois tiros dentro do quarto onde dormia, na madrugada de 2 de janeiro de 2013.

Tinha 30 anos, era bacharel em Direito e mãe de duas crianças pequenas. Yana não chegou a dizer à família que temia pela própria vida — mas confidenciou a amigas próximas que estava sendo ameaçada. Contou a pelo menos duas delas que tinha medo do companheiro e que só havia voltado ao Recife porque ele ameaçou matar quem ela mais amava. Para quem a conhecia de perto, não foi um crime passional. Foi execução. Uma queima de arquivo.

O autor dos disparos, segundo o Ministério Público, foi o então companheiro, Dário Ângelo Lucas da Silva, oficial da Polícia Militar de Pernambuco. O crime ocorreu dentro da casa da sogra, com as crianças no imóvel. A arma era da corporação. A cena, devastadora: a vítima alvejada sobre a cama, vestígios de sangue nas paredes, lesões nos braços, estojos deflagrados sobre o colchão. A perícia concluiu que ela estava deitada quando foi atingida.

Dário foi preso em flagrante, confessou parcialmente os fatos e teve a prisão convertida em preventiva. Três meses depois, foi solto por decisão do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Dois anos depois, foi promovido a major. E só em 2025, doze anos após o crime, será julgado pelo Tribunal do Júri.

A história de Yana não é uma exceção. É mais um exemplo de como o tempo protege quem mata — desde que tenha os contatos certos.

O crime que ela tentou evitar

Segundo depoimento da mãe da vítima, Yana vinha tentando sair do relacionamento. Relatava agressões, vigilância e controle obsessivo por parte do companheiro. Chegou a deixar o Recife por alguns dias, buscando proteção no interior do estado. Mas voltou. No dia anterior ao crime, ligou para a mãe e fez um alerta claro:

“Desta vez é definitivo. Se ele voltar aqui, ele me mata.”

Ele voltou. E matou.

A perícia oficial confirmou a materialidade do crime. Foram dois disparos com arma de fogo — um no dorso, outro na lateral do tórax. Ambos compatíveis com uma vítima em repouso. A cena do crime foi registrada no quarto do casal, com o corpo sobre a cama. As crianças estavam no imóvel no momento do assassinato.

Dário era capitão da Polícia Militar. A arma, uma pistola .40. O local, a casa de sua mãe. Nada disso foi suficiente para manter sua prisão.

Prisão revogada, carreira promovida

A denúncia foi oferecida poucos dias após o crime. A prisão preventiva foi mantida na fase inicial. Mas, em abril de 2013, o TJPE concedeu habeas corpus e revogou a custódia. A decisão é enxuta: “concede-se a ordem nos termos do voto do relator”. O voto, por sua vez, não consta nos autos digitais. Não há menção expressa a excesso de prazo, ausência de materialidade ou nulidade processual.

Com a liberdade assegurada, o réu seguiu sua carreira. Em 2015, foi promovido a major da Polícia Militar de Pernambuco. Dois anos após o crime, a corporação lhe conferiu uma patente superior. Mais tarde, veio a aposentadoria — com soldo integral.

Nenhuma sindicância. Nenhuma restrição funcional. Nenhuma manifestação pública da instituição.

O processo, a instrução e as falhas

A fase de instrução teve início em 2013. A primeira audiência foi marcada para agosto daquele ano, mas diversas testemunhas não foram localizadas. Outras foram ouvidas por carta precatória, com atrasos significativos. Algumas diligências solicitadas pela defesa — como a quebra de sigilo telefônico da vítima — nunca foram apreciadas.

Três anos depois, em 2016, o juízo da 1ª Vara Criminal de Paulista pronunciou o réu para julgamento pelo Tribunal do Júri. A decisão foi fundamentada com base nos laudos, nos depoimentos e na confissão parcial do acusado. O magistrado reconheceu indícios de autoria e materialidade suficientes para submeter o caso ao crivo popular. As qualificadoras — motivo fútil e recurso que dificultou a defesa — foram mantidas.

O réu, no entanto, continuou em liberdade.

Os recursos e a tentativa de desqualificação

A defesa interpôs Recurso em Sentido Estrito contra a decisão de pronúncia. Alegou nulidades formais, cerceamento de defesa, desigualdade de tratamento processual e ausência de contraditório. Apontou testemunhas que não foram ouvidas e diligências ignoradas, como o pedido de quebra de sigilo telefônico da vítima — que teria sido negado à defesa, mas deferido ao Ministério Público.

Mas entre os argumentos levantados, um chamou atenção pelo absurdo: a defesa tentou sustentar a tese de “legítima defesa da honra”.

Mesmo diante de uma mulher desarmada, alvejada na cama, na presença dos filhos, com laudo técnico e sinais de tentativa de defesa, a estratégia foi apelar à reputação do assassino.

A tese, rejeitada há décadas, foi duramente refutada pelo Ministério Público. O TJPE também afastou o argumento de plano: não há base legal, nem suporte probatório para transformar homicídio em proteção de reputação. Mas o fato de ter sido incluída em um recurso de 2016 — mais de três décadas após seu abandono formal — diz muito sobre o tipo de réu que ainda se vê autorizado a invocá-la.

Um homem que mata a esposa não tem honra a ser defendida. E quem tenta transformar assassinato em orgulho ferido não é jurista — é cúmplice.

O tempo que favorece quem mata

Entre 2013 e 2024, o processo oscilou entre diligências frustradas, recursos mal instruídos e respostas burocráticas. Enquanto isso, o réu colecionava vantagens: liberdade, promoção, aposentadoria. Nenhuma medida cautelar adicional foi imposta. Nenhum alerta público foi feito pelas instituições envolvidas.

A Justiça agiu. Mas agiu devagar. E, nesse caso, devagar demais significa vantagem para o réu.

Só em 2024 o julgamento foi finalmente marcado: 12 de junho de 2025.

Serão doze anos, cinco meses e dez dias entre o crime e o veredito.

Tempo suficiente para os filhos crescerem. Para o assassino subir de patente. Para a dor se transformar em rotina. E para o Estado reafirmar que os amigos do rei estão sempre mais perto da proteção do que da punição.

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *