O estupro de meninos que a sociedade transformou em piada, em orgulho e em rito de masculinidade.
Existe um dado que a maioria das pessoas não gosta de ouvir — e, na verdade, passou a vida inteira se recusando a enxergar. Quando o assunto é abuso sexual infantil, todos sabem dizer quem é a vítima. Todos sabem dizer quem é o agressor. O roteiro está pronto. E todo mundo decorou: a vítima é a menina. O abusador é o homem.
O problema é que esse roteiro não corresponde à realidade. Ou melhor: corresponde a uma realidade mutilada, editada, escolhida a dedo para que ninguém precise lidar com o que realmente acontece. Porque quando a vítima é um menino, a sociedade inteira fecha os olhos. E quando a agressora é uma mulher, a sociedade inteira ri.
Essa é a verdade. E é por isso que os números nunca bateram. É por isso que a estatística nunca refletiu a realidade. E é por isso que a psicóloga Leilane Rocha foi categórica ao dizer, durante uma entrevista no podcast da Ana Carolina Oliveira:
“Se no abuso de meninas já existe subnotificação, no de meninos há subnotificação ao quadrado.”
Mais adiante, ela arremata:
“Pergunta como foi a primeira experiência sexual dele. Tá ali o abuso. Tá ali a subnotificação.”
E não. Isso não é força de expressão. Isso é um diagnóstico cruel, real e incontestável.
O crime que a sociedade nunca ensinou os meninos a reconhecer como crime.
A história é velha. E todo mundo conhece. Mas nunca quis ouvir pelo nome certo.
“Perdi a virgindade com a vizinha de 30.”
“Meu pai me levou no prostíbulo quando eu tinha 12.”
“Foi com a babá.”
“Foi com uma prima mais velha.”
Durante toda a vida, esses relatos circularam como se fossem medalhas. Como se fossem motivo de orgulho. Como se aquilo que, em qualquer outro contexto, seria chamado de estupro de vulnerável, fosse apenas um rito informal de passagem para a vida adulta masculina.
E aqui cabe uma pergunta que a sociedade inteira se recusa a fazer:
Por que, quando uma menina de 12 anos tem uma relação sexual com um homem de 25, ninguém tem dúvida de que isso é estupro de vulnerável?
Ninguém discute. Ninguém relativiza. Ninguém pergunta se ela “quis”, se ela “gostou”, se ela “sabia o que estava fazendo”. Porque todo mundo sabe: menor de 14 não consente. Ponto. É crime. É violência.
Mas, quando é um menino de 12 e uma mulher de 25, a mesma sociedade que chama aquilo de crime no caso da menina, chama de “experiência”, de “iniciação”, de “orgulho”, de “história para contar”.
Se é estupro quando é com uma menina, é estupro quando é com um menino.
O Código Penal não faz distinção. Por enquanto, né? Porque se depender da lógica que já domina boa parte do sistema, não vai demorar muito para inventarem uma exceção. Uma vírgula. Um ‘mas’. Um ‘depende’. Um ‘se for menino, aí já é diferente’. Porque o que já fazem culturalmente — fingir que não é crime quando a vítima é menino — pode muito bem, amanhã, se transformar em letra de lei.
E como se tudo isso não bastasse, a própria ciência já respondeu o que qualquer pessoa honesta deveria saber: crianças dessa idade não estão preparadas — nem física, nem emocional, nem neurologicamente — para experiências desse tipo.
O cérebro de uma criança de 11, 12, 13 anos ainda está em desenvolvimento. As áreas responsáveis por regulação emocional, tomada de decisão, autocontrole, construção de vínculos e entendimento das próprias emoções simplesmente não estão prontas.
E quando são forçadas a viver experiências sexuais precoces — seja por violência explícita, seja pela manipulação cultural que transformou estupro em “iniciação” — o resultado é sempre o mesmo: trauma.
Trauma que molda a estrutura do cérebro, o desenvolvimento emocional e o funcionamento psicológico. E não desaparece. Vai se manifestar na vida adulta em forma de ansiedade, depressão, dependência emocional, disfunções sexuais, impulsividade, vícios, automutilação, transtornos afetivos e até reprodução dos mesmos ciclos de violência.
Essa é a cultura que transformou crime em piada. Que ensinou que, quando a vítima é um menino, não é violência — é orgulho. Não é estupro — é iniciação. Não é abuso — é só ‘ser homem’. Foi assim que ensinaram uma geração inteira a acreditar que menino não sofre, não sente e, principalmente, não pode ser vítima.
E os dados só escancaram ainda mais esse crime coletivo que a sociedade finge não ver. Se meninos estão, em média, iniciando a vida sexual aos 13 ou 14 anos, e as meninas aos 15 ou 16… então com quem está sendo essa “experiência”?
Não são meninas da mesma idade. Não são pares. Não são colegas da escola.
Esses meninos estão, na esmagadora maioria das vezes, sendo “iniciados” por mulheres mais velhas. Vizinha. Prima. Babá. Madrasta. Amiga da mãe. Ou até profissionais do sexo, muitas vezes contratadas pelos próprios pais — que acham isso normal. Que acham isso “formação de caráter”. Que acham isso “ser homem”.
E o mais criminoso: ninguém chama isso de estupro.
Ninguém chama isso de violência.
Ninguém chama isso de crime.
Chamam de:
“Virou homem.”
“Perdeu cedo, é ligeiro.”
“Meu filho é danado.”
“Tá no sangue.”
Quando, na verdade, o que esses meninos estão descrevendo — muitas vezes sem sequer saber — é exatamente o que a lei define como estupro de vulnerável.
Se fosse uma menina de 13 com um homem de 25, tava todo mundo preso. Todo mundo indignado. Todo mundo revoltado. E com razão.
Mas, quando é um menino de 13 com uma mulher de 25, todo mundo ri. Todo mundo bate palma. Todo mundo chama de “iniciação”.
Só que a lei não ri. A lei não diferencia.
Artigo 217-A do Código Penal: menor de 14 não consente. Ponto.
O que a sociedade chama de “iniciação”, o Código Penal chama de crime.
Artigo 217-A do Código Penal:
“Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos.”
Pena: reclusão de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
E a lei não pergunta se a vítima “quis”, “gostou” ou “achava que estava preparada”. Menor de 14 anos não tem capacidade para consentir. É crime. É estupro. É violência sexual.
Mas não é. Nunca foi. E nunca deveria ter sido tratado assim.
O que acontece é que os homens foram educados para não reconhecerem que são vítimas. Mais do que isso: foram educados a acreditar que serem vítimas — especialmente vítimas de abuso sexual — é algo incompatível com a masculinidade.
Por isso eles não contam. E quando contam, ninguém leva a sério.
“Ué, tu não é homem não?”
“Vai dizer que foi ruim? Mulher pegou no teu pau, tu tá reclamando do quê?”
Esse não é um discurso isolado. Não é uma piada de bar. Não é uma frase solta no recreio da escola.
Isso é a resposta institucional que muitos meninos ouviram dentro de delegacias. De policiais. De delegados. De adultos que deveriam protegê-los.
Quando o agressor é homem, a resposta não é diferente — só muda o tipo de violência.
Dessa vez, o silêncio não é comprado com a ilusão de que foi uma experiência “boa”. É comprado com medo.
Medo de ser chamado de gay.
Medo de ser emasculado.
Medo de perder a única coisa que a sociedade ensinou que define o seu valor como homem: a performance da própria masculinidade.
O menino abusado por outro homem não denuncia. E quando pensa em denunciar, é obrigado a calcular:
- Quantas vezes eu vou ouvir que a culpa foi minha?
- Quantas vezes eu vou ser chamado de fraco?
- Quantas vezes eu vou ser humilhado?
E é assim que o silêncio é construído.
O preço desse silêncio é altíssimo. E ninguém quer falar sobre isso.
Homens crescem desconectados da própria dor, da própria vulnerabilidade, dos próprios sentimentos. Crescem sem ferramentas emocionais. Crescem com vergonha de sentir, com medo de pedir ajuda, com pavor de serem percebidos como fracos.
E a consequência está aí.
- Homens são maioria absoluta nas estatísticas de suicídio.
- Homens são maioria nas internações por vícios.
- Homens são maioria entre os que abandonam os estudos.
- Homens são maioria entre os mortos por violência.
- Homens são maioria entre os que simplesmente desistem de existir.
E sabe o que a sociedade faz? Aponta para eles e diz:
“Homem é assim.”
“Homem não sabe se comunicar.”
“Homem é frio.”
“Homem não amadurece.”
Como se esses homens tivessem nascido assim. Como se isso fosse biológico. Como se isso não fosse o produto direto de uma infância marcada por abuso, negligência e uma cultura que ensinou que a única coisa que um homem não pode ser… é vulnerável.
Ninguém nunca ensinou os meninos que eles também podem ser vítimas.
Durante a campanha “Silêncio que Grita”, na Avenida Paulista, Ana Carolina Oliveira relatou uma cena que, sozinha, já explica toda essa tragédia social.
Enquanto falava sobre prevenção ao abuso, ela percebeu que as meninas, desde muito novas, já sabiam que aquele tema tinha a ver com elas. Elas sabiam que precisavam se proteger.
Os meninos, não. Os meninos olhavam sem entender. Sem saber do que se tratava. Sem sequer desconfiar que aquilo também era sobre eles.
E isso não é acaso. Isso é um projeto cultural.
A mesma cultura que ensinou as meninas que precisavam se proteger, ensinou os meninos que não precisavam se preocupar — porque, na cabeça de muita gente, “homem não é abusado”.
Inclusive, quantas mães você conhece que dizem, sem a menor vergonha:
“Ah, eu tive um menino. Agora tô mais tranquila.”
Tranquila de quê? De quem? Por quê?
A realidade é que os meninos também são abusados. E muito.
E os números oficiais sequer arranham a superfície desse problema.
Para cada dez casos de abuso notificados no Brasil, três são de meninos.
Mas se a subnotificação com meninas já é altíssima, a com meninos é simplesmente incalculável.
Segundo Leilane Rocha, se olharmos para a realidade, para os relatos, para os atendimentos psicológicos, para as histórias que nunca foram para a delegacia, a estimativa real é que seis em cada dez meninos foram abusados antes dos 13 ou 14 anos.
E você nunca escutou isso antes porque ninguém quis te contar.
Porque contar isso significaria expor um fato que a sociedade inteira finge não existir:
O abuso de meninos não some. Ele não desaparece.
Ele só é transformado em piada.
Em história de boteco.
Em orgulho masculino.
Em rito de passagem.
A sociedade converteu estupro em iniciação. E depois finge não entender por que os homens estão quebrados.
A pergunta que ninguém faz — e que destrói qualquer ilusão.
“Pergunte como foi a primeira experiência sexual dele. Está ali o abuso. Está ali a subnotificação.”
A infância desses meninos não foi protegida. Não foi cuidada. Não foi vista.
E o preço disso é pago todos os dias. Por eles. Por suas famílias. Por suas relações. Por uma sociedade inteira que finge que não entende de onde vem tanta dor.
O silêncio protege quem?
E se até aqui tudo isso te chocou, ótimo. Porque tem algo que precisa ser feito. E começa agora. Se os meninos nunca foram conscientizados, se nunca ninguém explicou para eles que eles também podem ser vítimas, então comece hoje. Fale agora. Não deixa para depois. Não espera pela escola, pela igreja, pelo psicólogo, pelo governo. É você quem tem que falar. É você quem tem que proteger. Porque quem não é educado, é exposto. Quem não é preparado, é vulnerável. Quem não aprende que tem direito ao próprio corpo, cresce achando que ser violentado é só “virar homem”.
O silêncio protege quem nunca deveria ser protegido: o sistema que ensinou que homem não sente, não sofre e não pode ser vítima.
O silêncio grita. E a gente precisa gritar mais alto do que ele.